Meninas do ensino médio comandam clube feminista no Ipiranga
O que aconteceria com o mundo se fosse dominado por mulheres? A resposta pode estar nas novas gerações. O clube feminista no Ipiranga mostra que garotas do ensino médio são muito mais do que alunas esperando o sinal da próxima aula.
Batizado de Nós Marias, o clube acontece dentro da Etec Getúlio Vargas, uma das instituições de ensino mais relevantes da região. A iniciativa é apoiada pelo projeto Girl Up, criado em parceria com a ONU (Organização das Nações Unidas) para incentivar meninas ao redor do mundo a partir do financiamento de programas de desenvolvimento de habilidades, direitos e oportunidades.
A ação de impacto global quer que, desde cedo, meninas se preparem para se tornarem líderes, afinal, os dados mostram que ainda há um distanciamento da figura feminina dentro da cargos governamentais, por exemplo, que contam apenas com 30% de representação na América do Sul.

O programa, que agora completa 10 anos de existência, chegou ao Brasil em 2018, primeiramente para unir adolescentes em prol da igualdade de gênero. É assim que se formam os mais de 2 mil clubes ao redor do mundo, que trocam informações e vivências entre si.
Segundo depoimento do site do Nós Marias, as integrantes do clube feminista no Ipiranga fazem parte da luta feminista jovem arrecadando verba, fazendo doações, criando eventos e organizando conversas acerca dos temas que envolvem o universo da mulher.
Boa parte delas são escritoras que não querem apenas escrever, querem ser lidas e usam a palavra para fazerem revolução. Com a rede de apoio fortalecida, elas espalham a palavra de que juntas somos realmente mais fortes.
No Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, as meninas se reuniram no Parque da Independência para palestras, sorteios, aulas de defesa pessoal, exposição de cartazes e conscientização do projeto, entregar kits de higiene pessoal e oficina de manicure gratuita para as mulheres interessadas.

Ao invés de ficar contando tudo aqui, por que não deixar que elas mesmas falem? Conversamos com a presidente do clube, Luana Lira, sobre a origem do projeto, a publicação dos livros e os impactos do hábito da leitura na vida da mulher,
Ipiranga Feelings: Quando o clube foi fundado? Vocês já se reuniam como clube de leitura antes do projeto da ONU?
LL: O Nós Marias só foi fundado mesmo em Agosto de 2019 e antes tínhamos um coletivo feminista que era bem inativo, então nunca realmente nos reuníamos como clube de leitura antes de sermos um Clube Girl Up.
– Qual é a faixa etária das participantes?
Todas nós temos entre 14 e 17 anos, o que é uma coisa bem doida, porque ninguém acredita quando dizemos!
– Quando e como são as reuniões do clube?
Nós nos reunimos uma vez por semana, sempre nos almoços. Mesmo agora, com o COVID-19, continuamos nos encontrando, mas de forma online, uma vez por semana.
As ideias que serão debatidas geralmente surgem do momento pelo qual estamos passando e também pelas perguntas das meninas no grupo. Perguntas do tipo “E os trabalhadores que não podem ficar em quarentena, a gente pode fazer algo para ajuda-los?”, então eu vou procurar formas de ação antes da reunião para, nesse momento, falar quais opções temos e fazermos uma votação.
Tudo é bem democrático e a gente sempre tem liberdade de falar o que acha melhor, tentamos ser um clube extremamente aberto para novas opiniões.
– Fiquei sabendo que vocês também escreveram um livro. É isso mesmo? Me conta!
Claro! Bom, por sermos um Clube temos contato com todos os outros Clubes brasileiros por um grupo de WhatsApp. No Dia da Menina (11/10) de 2019, nossa representante brasileira do Girl Up falou que tinha 4 contatos na imprensa para que as líderes escrevessem e publicassem artigos falando sobre o Dia da Menina nesses veículos de comunicação.
O problema é são mais de 20 líderes brasileiras e só havia 4 artigos que poderiam ser publicados! Isso me deixou bem mexida, porque sabia que as meninas que tivessem interesse mas não conseguissem a oportunidade naquela vez muito dificilmente a teriam novamente. E eu, como amante da literatura e jovem escritora, sabia o quanto era importante dar essa possibilidade para meninas: escrever e serem reconhecidas por isso.
Então fiquei matutando isso na minha cabeça até que arranjei uma ideia: criar uma seleção de contos de meninas do Brasil inteiro na qual, no final, teríamos um número x de contos que seriam publicados em um livro. É claro que eu sabia o quanto isso seria difícil, porque não tínhamos (e ainda não temos, hahaha) nenhum dinheiro em caixa, e a publicação de um livro não é uma coisa extremamente barata.
Notei, naquele momento, que eu precisava encontrar uma editora que topasse fazer o projeto editorial conosco sem custo algum, e fui atrás disso sem falar para ninguém, porque tinha medo de que jogassem um balde de água fria na minha cabeça.
Mandei mais de 50 emails para diversas editoras, muitas sequer me responderam, até que chegou a resposta da Pólen Livros que adorou o projeto e falou que queria sim trabalhar conosco.
Eu surtei naquela hora, não acreditava que eles realmente estavam dando credibilidade para o projeto de uma menina de 16 anos!
Falei tudo isso para o Clube (e as meninas surtaram comigo) e para a Letícia Bahia, a representante brasileira que é o anjo na vida do Girl Up Brasil. Todas nós nos apaixonamos pelo projeto e começamos logo a seleção de contos, fizemos um edital lindinho e até mesmo um site (o poder!).
Na seleção recebemos ajuda do Quebrando o Tabu para divulgação e alcançamos 261 inscrições de meninas de 25 estados, o que é nada mal para quem pensava que ia ter só três inscrições, hein. As meninas inscritas passaram pela triagem inicial e depois seus contos foram submetidos a notas de 0 a 10, que eram dadas pelas participantes do Clube Nós Marias. No final, temos 17 meninas selecionadas que já estão assinando contrato com a Pólen Livros para podermos publicar o livro no Dia da Menina de 2020!

– E como acontece a publicação de livros?
A publicação de um livro é um processo que parece ser extremamente complicado, mas na realidade é simples. Você primeiro precisa encontrar uma editora (ou pode fazer seu trabalho individualmente, como muitos autores brasileiros fazem) e decidir as partes jurídicas do livro que são: direitos autorais, separação de lucros, etc.
Depois disso você precisa ter seu livro pronto, já com todas as partes certinhas e enviar para a Editora que vai fazer o processo de revisão ortográfica. Durante a revisão, você já precisa tentar encontrar um ilustrador (que às vezes a própria editora tem) para fazer o projeto estético do livro: decidir capa, cores, diagramação.
Feito isso tudo é só fazer a revisão final, cadastrar o copyright do livro na ISBN (para que ele agora se torne uma obra legal e com direitos autorais) e enviar para a gráfica.
A gente super pensava que ia ser um bicho de 7 cabeças, mas toda a ajuda que estamos recebendo, tanto da Pólen Livros quanto da Letícia Bahia, faz com que estejamos bem mais tranquilas.
– Quantos livros você ou vocês chegam a ler por ano no Clube? Existe um foco de leitura? (ex: autoras feministas, etc)
Ano passado fizemos apenas um Clube do livro sobre “O Conto da Aia”, mas nesse ano ainda não realizamos nenhum por conta de todo o projeto do livro, mas queremos fazer em torno de 5 encontros anuais. Logo vamos marcar o primeiro do ano!
O foco de leitura são sempre livros que tem um conceito feminista, mesmo que sejam distópicos.

– Na sua visão, como os livros contribuem na formação e no fortalecimento das mulheres?
Livros são sempre uma fonte de conhecimento imensurável, isso não pode ser negado, e quando uma mulher que sempre passou por esse processo de submissão patriarcal nota que pode sim ter acesso à esse conhecimento e ser dona de si, muitas coisas mudam.
A primeira é que ela não vai se deixar ser enganada mais, pois é isso que homens fazem ao tirar a chance de educação de uma mulher: eles enganam a existência dela. E a segunda é que ela não vai mais abaixar a cabeça perante qualquer coisa que lhe for dita, porque agora ela tem fatos históricos e muito conhecimento guardado.
Um adendo extremamente importante é que esse processo de mudança acontece quando uma mulher têm acesso à um livro escrito por um homem, mas, quando o mesmo é escrito por uma mulher, a coisa é bem mais embaixo. Porque é nesse momento que ela nota que o mundo dos livros não é só para homens, não é só para pessoas que têm um alto conhecimento gramatical, mas sim para ela também.
E além disso, quando o livro é escrito por uma mulher de periferia, negra, pobre, falando sobre a situação de mulheres como ela, o mundo todo muda, porque naquele momento a literatura não pode mais ser estritamente relacionada à homens brancos ricos, da mesma forma que sempre foi na história brasileira, e abre muito mais portas mostrando que conhecimento é e deve eternamente ser para todos.
– O que você está lendo atualmente?
Isso também é uma pergunta complicada porque eu tenho um problema enorme de não conseguir ler apenas um livro e depois de finalizar, outro. Então as minhas duas leituras principais do momento são “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley e “P.S.: Ainda amo você”, de Jenny Han.
– Quais livros você recomenda para esse 2020 caótico?
Ah, isso é uma pergunta extremamente difícil! Recentemente tivemos um evento de Dia da Mulher e fizemos sorteio de livros então vou indicá-los porque são realmente muito bons.
- “O livro do feminismo”, de Ana Rodrigues;
- “Quem tem medo do feminismo negro”, de Djamila Ribeiro;
- “Sejamos todos feministas”, de Chimamanda Ngozi Adichie;
