O adeus ao barbeiro Abílio Gonçalves, eterno ipiranguista e corinthiano

Numa pequena portinha branca ao lado de uma das padarias mais famosas do bairro, um homem se dedicou diariamente ao trabalho ao longo de 78 anos. Era o barbeiro Abílio Gonçalves, que se instalou na rua Bom Pastor e só saiu quando as portas do local se fecharam para sempre.

O número 1.734, colado na Larsol Pães e Doces, quase em frente a uma banca de jornais, acolheu Seu Abílio de segunda-feira a sábado ao longo de sete décadas, o que o tornou o barbeiro mais antigo em atividade no bairro. Tal título será difícil de ser superado.

A profissão começou cedo. Ou melhor, a curiosidade pelo ofício, vinda de uma criança inquieta. O ipiranguista que herdou o nome de seu avô sorria ao contar que era bagunceiro, seja na escola ou na rua.

Até que um dia sua mãe, a espanhola Maria Rosana dos Santos Gonçalves, deu o ultimato típico da geração: “você vai se ocupar e vai aprender alguma coisa pra fazer na vida”. Dito e feito.

Após percorrer vários salões da região, foi neste da rua Bom Pastor que ela encontrou o Sr. Manoel, o então proprietário, disposto a acolher o jovem Abílio como aprendiz. Era uma prática comum que mães deixassem os filhos em barbearias para tirá-los do delicioso ócio adolescente. Porém, um ano depois da conquista, o menino perdeu a mãe, aos 35 anos. Parece até que o destino o levou a este lugar.

Foto por: Julio Guimarães – cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings

 

Dos 13 aos 15 anos Abílio ficava só observando os chefes Milton e Messias, e fazendo pequenas tarefas, como manter o salão limpo e em ordem. Aos finais de semana, ganhava um troco como engraxate e vendendo verduras. Até que começou a manusear tesoura e navalha para dar um tapa no visual dos clientes. Ganhava comissão de 60% por corte, tendo um rendimento de 800 réis por mês.

Na época, o Ipiranga era dez vezes mais provinciano do que é hoje. Com características rurais e hábitos de interior, tinha ruas de terra, corridas a cavalo lá para os lados da Cursino e bois passando entre as chácaras e sítios da região.

Não haviam prédios na rua Bom Pastor. Eram somente casas, ruas de terra e todos plantavam frutas nos quintais. Quando menino gostava de ver os tropeiros levarem os bois das fazendas daqui e irem pela rua Santa Cruz onde ficava um matadouro. Você já imaginou? Um monte de bois pela rua Santa Cruz! E depois disso caminhava até a avenida Ricardo Jafet e tomava um bom banho de rio antes de voltar para a casa

— contou abílio ao fotógrafo júlio guimarães, que ilustra a matéria

Foto por: Julio Guimarães – cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings

 

Passados oito anos, lá para meados de 1950, o antigo dono queria se aposentar e ofereceu a Abílio a oportunidade de ficar com o salão mediante prestações 1.000 cruzeiros mensais. Ele topou e a partir de então tinha seu próprio negócio, neste mesmo endereço, que apelidou de “buraquinho”, já que o espaço era pequeno.

Foi neste período, aos 19 anos, que se casou com Edir Virgílio Gonçalves, de quem ficou viúvo em 2012. Tiveram duas filhas, quatro netos e três bisnetos. A profissão de barbeiro que sustentou a família lhe dava orgulho, sendo além de um trabalho, uma paixão. Mesmo depois de se aposentar, seguiu trabalhando até seus últimos dias.

Foto pessoal cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings por Henrique Lee

 

“Ele contava que trabalhava religiosamente todos os dias, e que só tirava uma semana de férias por ano, em Abril, quando fazia aniversário. O seu Abílio sempre esteve lá e sempre foi muito querido, contou o cliente e morador do bairro Henrique Lee ao Ipiranga Feelings. Cortava o cabelo só com o barbeiro e agora está assim, meio órfão, na busca de outro profissional, “E ele cobrou R$ 15 pelo serviço por muitos anos. Até que o João, meu irmão, o convenceu a subir para 20 reais“, recordou. Justo!

 

No tempo livre, Abílio era um corinthiano roxo, com direito a pôsteres da Gaviões colados nas paredes e outros itens do time espalhados pelo salão, e jogador de futebol de várzea, que praticou até os 60 anos de idade. Cisplatina, Bom Pastor, Monte Verde e Tupi foram alguns dos times pelo qual passou.

Em 2010, numa matéria para o jornal O Estado de São Paulo, Abílio se queixou que o bairro já não era mais o mesmo devido à verticalização e modernização desenfreada que já dava seus primeiros passos.

A reportagem informa que ele havia se mudado devido o valor alto dos aluguéis, mas aparentemente o barbeiro nunca saiu nem do ponto comercial, que realmente era alugado, e nem do apartamento próprio, situado logo em frente ao trabalho.

Fato é que Abílio também não gostava de viver de passado, sendo um homem contemporâneo, debochado e vívido, que sequer aparentava a idade que tinha. Talvez sentia falta de um bairro mais tranquilo, mas não era movido à nostalgia.

Gosto muito do Ipiranga. Sou um dos últimos barbeiros do meu tempo!

Foto por: Julio Guimarães – cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings

 

Para isso, mantinha em seu salão várias relíquias que o conectavam ao passado saudoso e aguçavam a clientela. Máquinas manuais de cortar cabelo e navalha de aço foram herdadas do tempo de menino aprendiz. Ao fotógrafo Julio, o barbeiro disse que alguns clientes ainda pediam para que fosse utilizado o equipamento antigo para fazer os cortes.

Os móveis do salão foram feitos pelo pai do famoso Seu Oswaldo, falecido dono da hamburgueria mais conhecida do bairro, grande amigo e compadre de Abílio.

Uma rara caixa registradora norte americana e um relógio Juquer da Alemanha vieram de um antigo bar da rua General Lecor. Já o rádio antigo servia não apenas para ouvir notícias, mas também esquentar a marmita, visto que as válvulas do aparelho se aqueciam com certa facilidade, então ele aproveitava para deixar a comida em cima.

Foto por: Julio Guimarães – cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings
Máquina manual de cortar o cabelo – Foto por: Julio Guimarães – cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings
Foto por: Julio Guimarães – cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings

 

Abílio faleceu em decorrência de uma forte pneumonia, aos 90 anos, no dia 14 de fevereiro de 2020. No dia 25 de abril ele completaria mais um ano como barbeiro no bairro que nunca deixou de ser seu lar e jamais deixará. Fica um vazio, mas quem é grande assim nunca morre, apenas tira merecidas férias vitalícias.

Foto por: Julio Guimarães – cedida gentilmente ao Ipiranga Feelings
A fachada da barbearia e Seu Abílio trabalhando. Quando ia almoçar, tratava de colocar na porta do estabelecimento uma plaquinha: “volto já” – Foto via Google Maps

 

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Redação

3 thoughts on “O adeus ao barbeiro Abílio Gonçalves, eterno ipiranguista e corinthiano

  1. Meu grande amigo , Abílio 20 anos cortando o cabelo , deixou saudades , muitas saudades .
    Que Deus te abençoe onde estiver , para mim era um prazer a cada 30 dias ir cortar o cabelo com ele .
    Meus sinceros sentimentos ao meu grande amigo Abílio .

  2. O Abílio fez o meu primeiro corte de cabelo em 1947. Pelo que eu sei tinha 17 anos e estava iniciando a profissão Morava na Bom Pastor seu vizinho . Frequentei até meus 20 anos sua barbearia. Pessoa da minha alta admiração e respeito. R.I.P.

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